O literal rio de lixo
Os moradores da Rua do Gás, no Vale das Pedrinhas, favela bastante conhecida em Salvador, enfrentam diariamente um problema bastante complicado: por não haver acondicionamento correto do lixo - aliás, por não haver qualquer cuidado de disposição em relação ao lixo - a rua transforma-se em um depósito de chorume e restos de lixo, que impede a locomoção e perturba a vida de todos os habitantes dali.
Essa situação fica agravada em dias chuvosos: a água espalha o lixo mas não o escoa, por ser principalmente sólido. A favela inunda como uma Veneza nada turística e muito menos bela.
Foi exatamente isso que aconteceu durante o Carnaval de 2014. Enquanto Salvador comemorava sua festa mais tradicional, regada pela segregação social e por muito dinheiro público bem aplicado em cultura, a população do Vale das Pedrinhas não conseguia voltar para casa, e a festa daqueles que mais fazem parte dela - os próprios soteropolitanos - ficou comprometida, arruinada (a notícia muito breve que apareceu no Jornal da Metrópole pode ser lida aqui).
Eu tive o prazer de visitar Salvador no Carnaval. Nos dias em que estive lá, percebi que nos camarotes não havia nenhuma, ou quase nenhuma, pessoa negra - que são maioria na capital baiana. Percebi que era clara a diferença entre aqueles que podiam pagar por um abadá e os que não podiam, muito embora os artistas fizessem o possível para dar atenção para a Pipoca - nome que se dá, lá, para quem, assim como eu, vai à festa de graça, na rua mesmo, no dito "povão". Ainda que essa distinção seja injustificável, pensando no propósito da festa típica, de alegria e união, a maior diferença não é essa, mas sim para onde cada parcela dos foliões irá na hora que a festa acabar. Alguns conseguirão chegar a suas casas e hotéis para descansar. Outros enfrentarão o rio de lixo.
Diante disso, nada.
Nada mesmo. Nada aconteceu em relação a essa situação, nenhuma atitude foi e, presumo eu, nem será tomada no sentido da proteção dos moradores e visitantes da região.
O problema extrapola o nível da saúde pública. É claro que, em primeira instância, é preciso pensar que todo esse lixo gera doenças que vão contaminar a todos e provocar gastos futuros, que poderiam ter sido evitados. Dessa forma, até mesmo moradores de outras regiões, como a Pituba, por exemplo, bairro bastante abastado, com prédios chiques e "gente fina", acabarão afetados pelo problema. Nem assim, nem apelando para uma consequência que sai da linha da periferia o caso recebe a atenção merecida.
Ainda que esse lixo todo não gerasse problemas de saúde. Gera vergonha. Gera falta de pertencimento. Se já nos é desagradável conviver com o lixo da nossa própria casa por mais de uma semana; se já estranhamos se o caminhão de lixo não vem; se qualquer papel de bala ou meleca já nos incomoda profundamente, imaginem só a situação extrema de ser forçado a conviver e contemplar, diariamente, indefinidamente, os dejetos de toda a vizinhança.
Ah, mas uma coisa o governo municipal de Salvador não deixou de notar: lembraram de ajustar o valor do IPTU e inclusive passar a cobrar esse imposto nas comunidades que não recebem os serviços públicos básicos pelos quais serão forçadas a pagar. A OAB entrou com processo contra o reajuste (conforme pode ser visto aqui), mas o caso não está encerrado.
Ou seja, além de serem submetidos a uma situação insalubre e vergonhosa, lamentável, ainda mais dentro do contraste que aparece na cidade à época do Carnaval, os moradores ainda terão que engolir um imposto injusto e impensado referente a uma série de serviços, mantendo, porém, a indecência das condições de vida.
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