Vertigem

Clarice olhou pra mim com seus olhos grandes de ressentimento, com seu nariz comprido de fúria e com seus lábios franzidos de confiança. Eu sabia, claro, que dentro dela havia a mesma Clarice, a mesma menina, a mesma Ninice que eu sempre amei, e ainda amaria, mas a crise de ciúme que se sucedeu foi fora dela, fora do mundo dela.
Ninguém além dela deveria ter mais certeza de que era amada - sempre recebia flores em forma de poemas, sempre recebia de mim tudo o que eu podia dar, que era eu mesmo, que era pouco, que era muito, que era o só, o seu, o dela. Clarice tinha o que todas as outras que a olhavam queriam: ser amada. E por ser tão amada talvez ela nunca cansasse de ser amada e quisesse que aquele amor aumentasse constantemente, não suportando a idéia de que eu talvez pudesse sequer - meu Deus, que injúria - elogiar o cabelo de outra mulher.
Pois elogiei.

- Bonita a franja nova da Marilia.
- Ééé...
- Que foi Clarice, por que esse bico logo hoje, gracinha? O dia tá tão lindo, sol tão aberto!
- Nada, to pensando na franja da Marília. Pra você ter reparado deve ter ficado uma beleza, mesmo, né?
- Ah, mas Clarice, você ta com ciúme? Eu bem que não acredito!
- Eu, com ciúme? Até parece!

Insisti. Ela se enfureceu quando eu disse que não tinha nada demais eu elogiar outra, dizendo que eu nunca aceitaria se fosse da parte dela, dizendo que eu nunca elogiava o cabelo dela, me xingou, me deu um tapa doído de desapontamento na cara, meio que à toa, numa briguinha besta de casal. Depois me olhou com remorso. Era tarde. Eu, claro, fiquei me fazendo de vítima, bolei milhares de planos de reconciliação mágicos, em que eu agarraria Clarice e a levaria em um tapete mágico para o mundo dos sonhos e da felicidade na ponte de um beijo.

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