Clarice

O mundo então me parece mais justo. Olho pela janela e vejo as cores no céu cinza que cobre esta cidade. Clarice continua dormindo. Olho para ela com amor; todo aquele amor que eu dediquei pra ela por todos os anos de nossa vida juntos. Como pude amar tanto alguém tão pequenino como ela? Como pude encontrá-la, tão perfeita, de ar tranqüilo e límpido, no meio de uma multidão de sanguessugas do meu glamour que habitam essa cidade?
Fechei os olhos com saudade, saudade de um tempo em que Clarice era só minha. Mais uma vez as cores lá fora pareciam invadir meu coração e deixar em mim o gostinho que aquelas tardes na pracinha tomando sorvete e soltando as cantadas mais baratas que eu sabia só para arrancar os mais doces e sinceros sorrisos da Clarice. Tudo girava em torno dela, nas canções que ouvia eu fechava os olhos por ela, os sorrisos que eu emitia eram todos pensando nela. E ela sorria em mim também, e eu nela, sempre os dois, se cabendo, se bastando, se completando sem mais ninguém pra botar defeito.
Quis o destino que eu me casasse com aquela mesma Clarice, a doce e meiga Clarice, que em uma tarde de outubro me cumprimentou pela primeira vez, em frente ao ponto de ônibus, lá pelas cinco horas da tarde, metida em uma roupa simples, calça jeans de adolescente quase toda rasgada, camiseta rosa clarinho, com umas flores bordadas sobre o seio. Acho que jamais esquecerei aquelas flores, que me hipnotizaram assim que eu as vi, instigando minhas fantasias de garoto bobo que fui.

- Sabe se passa o ônibus pra Rua Jasmim aqui? Procurei, mas não tem placa...
- Passa. Pelo menos eu acho que passa, sim. Tem uns amigos que pegam, eles descem aqui as vezes, sabe...
- Sei..
- Ei, você estuda no Barão, não estuda? Eu acho que já te vi por lá...
- É, eu estudo, estudo sim, mas nunca... Nunca, acho que nunca... Que nunca reparei em você.

Pronto. Dois meses depois, amiga. Um ano, namorada. Mas eu nunca esqueço também da primeira briga com ela. Doce Clarice, doce e meiga Clarice que iluminou meus dias de menino, sonhando com as flores do decote, com as saias que ela usava, doce menina que me fazia suspirar e sonhar, olhar o mundo com as mesmas cores coloridas e vivas que eu vejo hoje, aqui, agora, na minha janela. Mas naquela briga minha doce Clarice não parecia nada com a Clarice que hoje dorme na minha cama. Áspera. Fria. Cheia de razão.

Comments

Anonymous said…
Gente, que trágico. oo'
Speechless.
Anonymous said…
nom li ^^

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